4 de março de 2010

Dia das Mulheres – reflexões

Dia das Mulheres: é mais uma oportunidade de sentar-se e observar a situação, pensar sobre as conquistas e derrotas. Pois receber uma rosa e bela palavra teria que ser um ritual costumeiro e diário

O direito da mulher de votar, o direito de não mudar o sobrenome depois do casamento em favor dos homens, o direito de não usar a burca, o direito de trabalhar e ser remunerada e valorizada igualmente aos homens – há ainda muitos lugares no mundo onde estes direitos são dificilmente colocados em prática de fato. Mas é muito bom perceber que o grau de real estabelecimento destes direitos caminha junto do grau de desenvolvimento daquela sociedade. Quanto mais progresso e cultura tem a sociedade, mais natural é o reconhecimento destes direitos.



Mas a conquista destes direitos tão necessários e óbvios ainda não é tudo, como lembrou muito bem John Lennon na canção Woman is the Nigger of the World, (tradução nos comentários), que foi escrita a mais de 30 anos atrás, e é ainda actual. Milhares de mulheres morrem cada ano de anorexia nervosa. Milhões de mulheres vão as academias, mas a saúde muitas vezes não é o primeiro motivo. Milhões de mulheres caem em depressão por causa do mais belo sapato ou vestido, ou por causa do naris grande ou seios pequenos. Milhões de mulheres a cada ano deitam-se na mesa de cirurgia não por causa de problemas de saúde, mas por causa da beleza “ideal”. Quando se faz tudo isso por sí mesma, pelos seus próprios olhos quando se olhar no espelho: então excelente. Mas quando agem por causa dos olhos dos outros, quando fazem por causa do ideal pintado por outros, por reconhecimento, pela atenção dos homens: então já é uma triste auto-desvalorização. Conquistam o direto de estar legalmente em igual posição social, mas em seguida se deixam levar á escravidão.

Ainda outro problema o qual se pode perceber claramente: a confusão. Ajudar a colocar o casaco, abrir a porta do carro, ajudar a levar a sacola, etc. – tudo isso desaparece não só porque os homens esqueceram do sentido destas coisas, mas também por causa das próprias mulheres, que pensam que estas coisas são relacionadas a questão de independência... Os homens que tentam ser como antigos gentlemenas arriscam ouvir tal resposta: “eu mesma posso”. Mas quando o homem quer ajudar a levar a sacola quando está indo na mesma direção ou quando oferece o próprio casaco para proteger a mulher da chuva, não nega que ela mesmo poderia se virar, e se virar ainda melhor... e que ela pode ainda melhor fazer aquele ou aquele outro trabalho, mais rapidamente subir aquela ou aquela outra montanha, etc.
Estas ajudas não tem de ser encaradas como necessárias – não é sempre que a ação tem de vir pela necessidade... as vezes pode ser pelo desnecessário cuidado, pela desnecessária beleza... mas a vida é mais cinza quando se elimina todas as coisas “desnecessárias”.

A mulher tem de defender o seu direito a igualdade, tem de estar atenta pela sua real liberdade, mas também estar aberta para aquilo que pode fazer elas e os homens sentirem-se importantes e valorizados,

ANSELMO BORGES - Haiti. Onde estava Deus? (2)



Professor douctor Anselmo Borges, maior autoridade na teologia e filosofia de Portugal, escreveu no dia 20 de fevereiro este artigo no jornal Diário de Noticias

Como se lê no documento da Associação de Teólogos João XXIII, aqui citado na semana passada, a pergunta religiosa "onde está Deus no Haiti?" "não é nem pode ser a primeira". Na tragédia do Haiti, converge um conjunto de dados: uma zona sísmica; a mão agressiva do Homem, que desflorestou o Haiti, explorou sem limites as suas reservas naturais e construiu sem o mínimo de segurança; as condições de extrema precariedade em que os colonizadores deixaram o país, a tradição esclavagista, a corrupção generalizada, a ditadura de Governos exploradores, a distribuição injusta dos recursos... O documento observa, criticamente: tudo se afundou, mas o moderno bairro rico de Pétionville, em Port-au-Prince, foi preservado.

A ordem internacional "está montada sobre a concentração da riqueza em 20% da Humanidade e o desamparo de boa parte dela". Governos corruptos, países ricos que os protegem por causa dos seus próprios interesses, tornam alguns povos e Estados incapazes de defender-se de catástrofes naturais. "Sem esta ordem de coisas, a catástrofe teria sido muito menor." Os haitianos são tão pobres que nem possibilidades tinham de receber e distribuir as ajudas que chegavam ao território. Assim, deve-se culpar "a actual ordem internacional que só pode sustentar-se na base do poder económico, político e militar dos países ricos e a persistente corrupção das elites dirigentes do país".

E Deus? Todos temos de mudar, para que não haja mais "Haitis assolados nem Palestinas massacradas nem Auschwitz nem Hiroshimas", e o Deus de Jesus deve ser "o grande acicate de justiça e solidariedade para todos os que se chamam cristãos".

Mas a pergunta atravessa a história do pensamento, e é particularmente dramática para quem acredita no Deus pessoal e criador, omnipotente e infinitamente bom. Deus quis evitar o mal, mas não pôde: então, não é omnipotente. Pôde, mas não quis: então, não é bom. Pôde e quis: então, donde vem o mal?

Aqui, também é necessário perguntar: donde vem o bem? De qualquer modo, as tentativas de resposta sucederam-se. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino argumentaram que o mal não existe em si mesmo, pois é só uma privação no bem. Ou então que Deus não quer o mal, apenas o permite como provação e castigo. Pergunta-se: e as crianças inocentes? É por causa do sofrimento das crianças que Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov, faz Ivan dizer que entrega o "bilhete de entrada" no mundo. Em A Peste, de A. Camus, o Dr. Rieux diz ao padre que, diante da criança que morre, não pode aceitar Deus.

À famosa Teodiceia (justificação de Deus), de Leibniz, onde se defende que este é o melhor dos mundos possíveis, Voltaire contrapôs ironicamente o seu Cândido e o "Poema sobre o desastre de Lisboa", por causa do terramoto. A. Schopenhauer escreverá que este é o pior dos mundos possíveis.

Hegel dialectizou o sofrimento em Deus: a negatividade é um momento da história de Deus. Um pouco na esteira hegeliana, alguns teólogos falaram de um "Deus sofredor" e, face ao horror do Holocausto, o filósofo judeu Hans Jonas defendeu a impotência de Deus: em Auschwitz, Deus calou-se, "não porque não quis, mas porque não pôde". Pergunta-se: é claro que o poder e a bondade de Deus não podem ser concebidos ao modo humano, mas que ajuda traz um Deus impotente? Deus solidariza-se com o ser humano na cruz de Cristo.

O teólogo A. Torres Queiruga pergunta se não é contraditório pretender pensar um mundo finito sem mal. Face ao mal, que atinge crentes e não crentes, todos têm de viver e justificar a sua fé. E Hans Küng, que reconhece que o mal parece ser "a rocha do ateísmo", pergunta, com razão, na sua última obra Was ich glaube (A minha fé): "O ateísmo explica melhor o mundo" do que a fé em Deus? "No sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido, a descrença pode consolar? Como se a razão descrente não encontrasse também neste sofrimento o seu limite! Não, o antiteólogo não está aqui de modo nenhum melhor do que o teólogo."