Escreve Vladas Bartochevis
Lembro das aulas de Anselmo Borges, quando ele dizia sobre o Grande Mistério, sendo algo tão gigantesco, que nenhuma cultura seria capaz de enxergar todos os seus lados. Todas as culturas dizem a verdade, a verdade a qual vêem. Os budistas, a partir do seu ponto de vista, descrevem a parte do Grande Mistério que enxergam; os católicos vêem outra parte a partir de seu ponto de visão; os hindus vêem outra, os muçulmanos outra, e assim por diante.
E esta dinâmica esta em todas as outras relações que temos durante o dia e a vida, entre todas as coisas e pessoas. Para ter a prova, olhe para um objeto qualquer. Perceba que é impossível ver todos os seus lados ao mesmo tempo. Preciso dar a volta para ver os outros lados ou pedir a ajuda de outra pessoa para que diga o que vê dali da esquerda, como é aquele objeto dali da direita, para que eu possa entender melhor aquele objeto.
Assim é com todos os objetos, assim é com todos os acontecimentos, assim é com o Grande Mistério, assim é com toda a realidade que nós cerca.
A física não permite que eu veja uma coisa da mesma forma que outra pessoa vê ao olhar para esta coisa, pois simplesmente é impossível ocupar o mesmo lugar e ter o mesmo ponto de visão.
A história também impede que as pessoas possam ver as coisas da mesma maneira, pois ninguém viveu as mesmas coisas.
A psicologia diz que cada pessoa sente de forma única e por isso vemos a mesma coisa de formas diferentes. E ninguém pode entrar em outra pessoa e sentir da mesma maneira que a outra pessoa sente.
Cada cultura, cada indivíduo, tem suas verdades próprias e legítimas. Isso pode significar discórdia, pois é sempre tentador dizer que minha verdade não é apenas legítima, mas é a melhor e querer o seu reconhecimento. Mas pode significar que cada cultura e cada indivíduo é uma possibilidade viva e rica de se compreender melhor tudo o que nos cerca. E assim o respeito e o dialogo são os verdadeiros caminhos para a plenitude.
4 de março de 2011
As religiões místicas
Anselmo Borges é reconhecido como uma das maiores autoridades da Teologia e Filosofia não só da Europa, mas de todo o mundo. E temos o prazer de trazer seus textos aqui na Vírgula e traduzí-los para a versão lituana do projeto, para que a Lituânia também possa se enriquecer com as sábias palavras deste grande pensador e mestre.
Aqui segue o texto publicado no Diário de Notícias de Portugal do dia 26 de fevereiro. A versão lituana está em www.kableliai.blogspot.com
(obs.:na foto Anselmo Borges e Antônio Colaço)
Qualquer pessoa verdadeiramente religiosa já alguma vez disse para si mesma: se tivesse nascido noutro continente, de uma família de outra religião, muito provavelmente a minha pertença religiosa seria outra. Na Índia, seria hindu. Em Marrocos ou na Indonésia, muçulmano. Em Israel, de mãe judaica, seguiria o judaísmo. Na China, seria confucianista ou taoísta. No Japão, xintoísta. Na Europa, em Portugal, cristão católico; na Rússia, cristão ortodoxo; na Suécia, cristão luterano.
É este exercício que o teólogo católico Hans Küng faz na sua última obra Was ich glaube (A minha fé), resultado de uma série de lições dadas, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga.
Se tivesse nascido como um dos 1200 milhões de seres humanos na Índia, provavelmente seria hindu. Acreditaria no samsara, o ciclo das reencarnações, no quadro de uma compreensão cíclica do tempo, da natureza, dos diferentes períodos cósmicos e da história. Aceitaria que tudo é regido por uma "ordem eterna" ("Sanata dharma"), cósmica e moral e pela qual o ser humano se deve orientar. Importante é agir correctamente. Acreditaria que a minha vida presente resulta da minha acção moral boa ou má na vida anterior ("karma"), como a minha vida presente determina a vida seguinte. A saída do ciclo das reencarnações dar-se-ia na identificação de atman (eu) com Brahman (o Absoluto, a Realidade última e verdadeira).
Nascido no Sri Lanka, na Tailândia, no Japão, seria provavelmente um entre as muitas centenas de milhões de budistas, rejeitando a autoridade dos Vedas e, assim, também o domínio dos brâmanes e das castas. A figura que serviria de orientação seria Siddharta Gautama, "o Buda", que quer dizer "o Desperto", o "Iluminado". Desde o século VI a. C., ele responde, através da sua doutrina ("Dharma"), às grandes perguntas humanas. Essa resposta concentra-se nas "Quatro nobres verdades". A primeira: tudo é sofrimento, também no sentido de que tudo é impermanente. Qual é a origem do sofrimento que atravessa a vida toda? Responde a segunda: É a "sede de viver", o desejo, o ódio, a cegueira espiritual. A terceira nobre verdade diz que, através do desapego, é possível superar o sofrimento. Para isso, há a nobre verdade do caminho, com oito braços, que conduz à extinção do sofrimento: a visão perfeita, a resolução perfeita, a linguagem perfeita, a acção perfeita, a vivência perfeita, o esforço perfeito, o recolhimento perfeito, a concentração perfeita. Procura-se superar o renascimento, alcançando o Nirvana, aquela situação na qual já não há cegueira e todo o desejo é apagado - aquela situação que, já nada tendo a ver com a nossa experiência empírica, carece de toda a figura concreta, e, por isso, é o Nada, não no sentido niilista, mas de paz, plenitude e felicidade.
Nascido na China como um dos 1500 milhões de chineses, seguiria uma das três tradições religiosas: o budismo, o confucianismo ou o taoísmo.
O confucianismo não é tanto uma religião no sentido ocidental da palavra como sobretudo uma moral, baseada no equilíbrio cósmico e procurando a integração social. O Todo divino da Realidade é simbolizado pelo Céu imutável e os antepassados, que exprimem a permanência da Vida. Confúcio foi o primeiro na história da humanidade a formular a regra de ouro: "Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". A sua moral assenta no equilíbrio cósmico, político e familiar, no quadro de um organicismo vital, hierárquico e polar: soberano-súbditos, homem-mulher, pais-filhos, irmãos mais velhos-irmãos mais novos. Ocupa lugar central o culto dos antepassados, associados ao Céu.
O taoísmo, radicado em Lao-tsé, estrutura-se no quadro de uma concepção da Realidade como harmonia de contrários. É bem conhecido o pictograma do Tao, um círculo e esfera perfeitos que tudo contêm, estando as suas duas metades - uma clara, outra escura, Yang (céu, masculino) e Yin (terra, feminina) - em movimento constante e exprimindo o Todo num equilíbrio de momentos polares.
Sem diálogo entre as religiões, não haverá paz entre as nações. Para dialogar, é preciso conhecer.
Aqui segue o texto publicado no Diário de Notícias de Portugal do dia 26 de fevereiro. A versão lituana está em www.kableliai.blogspot.com
(obs.:na foto Anselmo Borges e Antônio Colaço)
Qualquer pessoa verdadeiramente religiosa já alguma vez disse para si mesma: se tivesse nascido noutro continente, de uma família de outra religião, muito provavelmente a minha pertença religiosa seria outra. Na Índia, seria hindu. Em Marrocos ou na Indonésia, muçulmano. Em Israel, de mãe judaica, seguiria o judaísmo. Na China, seria confucianista ou taoísta. No Japão, xintoísta. Na Europa, em Portugal, cristão católico; na Rússia, cristão ortodoxo; na Suécia, cristão luterano.
É este exercício que o teólogo católico Hans Küng faz na sua última obra Was ich glaube (A minha fé), resultado de uma série de lições dadas, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga.
Se tivesse nascido como um dos 1200 milhões de seres humanos na Índia, provavelmente seria hindu. Acreditaria no samsara, o ciclo das reencarnações, no quadro de uma compreensão cíclica do tempo, da natureza, dos diferentes períodos cósmicos e da história. Aceitaria que tudo é regido por uma "ordem eterna" ("Sanata dharma"), cósmica e moral e pela qual o ser humano se deve orientar. Importante é agir correctamente. Acreditaria que a minha vida presente resulta da minha acção moral boa ou má na vida anterior ("karma"), como a minha vida presente determina a vida seguinte. A saída do ciclo das reencarnações dar-se-ia na identificação de atman (eu) com Brahman (o Absoluto, a Realidade última e verdadeira).
Nascido no Sri Lanka, na Tailândia, no Japão, seria provavelmente um entre as muitas centenas de milhões de budistas, rejeitando a autoridade dos Vedas e, assim, também o domínio dos brâmanes e das castas. A figura que serviria de orientação seria Siddharta Gautama, "o Buda", que quer dizer "o Desperto", o "Iluminado". Desde o século VI a. C., ele responde, através da sua doutrina ("Dharma"), às grandes perguntas humanas. Essa resposta concentra-se nas "Quatro nobres verdades". A primeira: tudo é sofrimento, também no sentido de que tudo é impermanente. Qual é a origem do sofrimento que atravessa a vida toda? Responde a segunda: É a "sede de viver", o desejo, o ódio, a cegueira espiritual. A terceira nobre verdade diz que, através do desapego, é possível superar o sofrimento. Para isso, há a nobre verdade do caminho, com oito braços, que conduz à extinção do sofrimento: a visão perfeita, a resolução perfeita, a linguagem perfeita, a acção perfeita, a vivência perfeita, o esforço perfeito, o recolhimento perfeito, a concentração perfeita. Procura-se superar o renascimento, alcançando o Nirvana, aquela situação na qual já não há cegueira e todo o desejo é apagado - aquela situação que, já nada tendo a ver com a nossa experiência empírica, carece de toda a figura concreta, e, por isso, é o Nada, não no sentido niilista, mas de paz, plenitude e felicidade.
Nascido na China como um dos 1500 milhões de chineses, seguiria uma das três tradições religiosas: o budismo, o confucianismo ou o taoísmo.
O confucianismo não é tanto uma religião no sentido ocidental da palavra como sobretudo uma moral, baseada no equilíbrio cósmico e procurando a integração social. O Todo divino da Realidade é simbolizado pelo Céu imutável e os antepassados, que exprimem a permanência da Vida. Confúcio foi o primeiro na história da humanidade a formular a regra de ouro: "Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". A sua moral assenta no equilíbrio cósmico, político e familiar, no quadro de um organicismo vital, hierárquico e polar: soberano-súbditos, homem-mulher, pais-filhos, irmãos mais velhos-irmãos mais novos. Ocupa lugar central o culto dos antepassados, associados ao Céu.
O taoísmo, radicado em Lao-tsé, estrutura-se no quadro de uma concepção da Realidade como harmonia de contrários. É bem conhecido o pictograma do Tao, um círculo e esfera perfeitos que tudo contêm, estando as suas duas metades - uma clara, outra escura, Yang (céu, masculino) e Yin (terra, feminina) - em movimento constante e exprimindo o Todo num equilíbrio de momentos polares.
Sem diálogo entre as religiões, não haverá paz entre as nações. Para dialogar, é preciso conhecer.
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